domingo, 24 de abril de 2011

Anotações para uma reflexão sobre o conformismo do “novo” trabalhador (1ª Parte)

 Observação do blogueiro: o mesmo ocorre com o esporte.


Passa Palavra - [Emílio Gennari] A sustentar a percepção de que tudo depende da capacidade de o indivíduo buscar sua realização e acreditar em suas capacidades, a baixa autoestima começa a ser sistematicamente apontada como a origem dos problemas sociais que antes eram atribuídos a uma situação de injustiça que a sociedade reproduz pelas relações nela estabelecidas.

Já é parte do senso comum a ideia de que o perfil dos trabalhadores tem mudado fortemente em relação ao de duas décadas atrás. A solidariedade, a indignação e o sentimento de coletividade andam em baixa e a atuação dos dirigentes sindicais tem se tornado cada vez mais difícil.
No texto que segue, apresentamos fragmentos de uma reflexão a ser aprimorada e aprofundada. Nele, reunimos alguns elementos que permitem avançar em relação às conclusões a que chegamos na segunda edição do estudo “Da alienação à depressão – caminhos capitalistas da exploração do sofrimento”, mas que ainda demandam uma análise cuidadosa. Apesar disso, submetemos este rascunho à sua apreciação para que possa ajudar a entender melhor o momento de dificuldade vivido pelos sindicatos e demais movimentos. Boa leitura!
Nos últimos 20 anos, as emoções ganham um lugar de destaque nas preocupações das forças que buscam moldar um consenso social capaz de levar as pessoas a melhor se adaptar às novas exigências da exploração. Para percebermos esta realidade, basta abrir as centenas de anexos que acompanham os e-mails que recebemos ou ler algum livro de autoajuda. Via de regra, seu conteúdo revela que a análise racional da realidade cede o lugar a impressões e ideias que dialogam com a sensibilidade das pessoas e oferecem um enfoque sentimental a aspectos do cotidiano que eram vistos como um obstáculo para a felicidade do indivíduo. Além da ausência de uma comprovação empírica consistente, chama atenção o convite a aceitar a realidade como algo natural e não como fruto de uma construção histórica que se dá a partir de determinados interesses de classe. A ordem social que serve de pano de fundo parece algo tão cotidiano, neutro, imparcial e inevitável quanto a lei da gravidade. Lutar contra ela, passa a ser visto como ilógico e sem sentido, ao passo que conviver com a ordem para aproveitar o que esta pode oferecer é apontado como um passo necessário para construir metas individuais que abram os caminhos da afirmação pessoal e da felicidade possível. O “EU” que se constrói numa mistura de aceitação do sofrimento e de esforço para superar os próprios limites sabe que tem que “ralar para subir na vida”, mas, ao mesmo tempo, começa a ler os entraves com os quais se depara como ameaça ao seu bem-estar emotivo e à auto-estima. Trata-se, portanto, de algo que passa a ser vivido cada vez mais na intimidade de um sujeito cujos critérios de análise o dobram sobre si mesmo na exata medida em que o colocam como início, meio e fim de qualquer ação a ser empreendida e o tornam incapaz de uma leitura da realidade na qual o “OUTRO” não seja somente mais um concorrente a derrotar.
A sustentar a percepção de que tudo depende da capacidade de o indivíduo buscar sua realização e acreditar em suas capacidades, a baixa autoestima começa a ser sistematicamente apontada como a origem dos problemas sociais que antes eram atribuídos a uma situação de injustiça que a sociedade reproduz pelas relações nela estabelecidas. Desta forma, não são mais os mecanismos econômicos, políticos, sociais e culturais a gerarem e alimentarem uma realidade de pobreza, marginalização, discriminação, violência etc, mas sim a ausência no sujeito de uma atitude imprescindível ao seu desenvolvimento e à sua afirmação social: a autoestima. Se, de um lado, a gente não escolhe o berço onde nasce, de outro, para a intelectualidade a serviço da elite, o que explica a pobreza em que você se encontra é a ausência de atitudes positivas em relação ao presente e ao futuro. Se você não acredita em você mesmo, não valoriza o seu potencial, não se dá ao trabalho de descobrir e pôr pra funcionar os talentos de que dispõe, então, não há como deixar esse berço incômodo em que o acaso o fez nascer. Trocado em miúdos, ninguém tem culpa de você ter nascido pobre, portanto, pare de se queixar, pense positivo, levante a cabeça, tente novas possibilidades, invista em você mesmo, assuma desafios, olhe para o novo, pois a responsabilidade por você continuar na condição social em que se encontra é somente sua!
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A dinâmica que fortalece no sujeito esta percepção tem como base o fato inegável e natural de que qualquer situação é vivenciada de forma diferente por cada membro de um determinado grupo social. O foco, portanto, não é o grupo, e menos ainda as relações sociais a que está submetido, mas sempre e somente o indivíduo que vive de forma particular a realidade na qual está inserido. No caso da exclusão, por exemplo, vários autores colocam suas origens numa experiência de alienação, na baixa autoestima, na passividade, na dependência, na desorientação, no medo, na raiva, na apatia, na ausência de aspirações, na falta de perspectivas ou atitudes do sujeito e na incapacidade deste se adaptar às demandas da realidade. Desta forma, a exclusão não nasceria de precisos mecanismos de exploração/acumulação no campo da economia e das relações de propriedade, mas sim nos núcleos da esfera privada que estão na base da formação de cada um de nós, entre os quais a família ganha, evidentemente, um papel de destaque. Na medida em que esta célula da vida em sociedade reproduz em cada membro uma devastação interior dos sentimentos e das emoções que torna os indivíduos incapazes de se afastarem de um comportamento antissocial, ela passa a ser responsabilizada pela incapacidade de o sujeito dar a volta por cima. A família ser pobre, portanto, não é problema nem empecilho para o desenvolvimento de atitudes positivas na vida dos seus membros desde que, como peça-chave da vida em sociedade, ela se torne capaz de levá-los a acreditar em si mesmos, no seu potencial e a lutar para vencer na vida nos moldes narrados, por exemplo, no filme “Os filhos de Francisco”. Num passe de mágica, os mecanismos da injustiça social desaparecem deixando aberto o caminho à supervalorização das atitudes individuais.
Para o desemprego, a explicação não se distancia da que acabamos de apresentar. Ninguém duvida que esta praga dos tempos atuais provoca efeitos psicológicos devastadores a ponto de levar o sujeito a um estado depressivo ou até mesmo a tirar a própria vida. Mas o problema está justamente no movimento que isola as emoções da realidade do mercado, da exploração, das pressões sociais e leva a ver os distúrbios psíquicos como resultado de emoções não trabalhadas que, por atingirem grupos sociais significativos, justificariam o fato de colocá-las na origem dos fenômenos antes desconhecidos. Na medida em que o indivíduo não sabe lidar com os sentimentos negativos que experimenta diante do desligamento da empresa, a demissão gera, involuntariamente, uma personalidade potencialmente destrutiva, responsável, em última análise, pelo mal-estar individual e social num processo que se alimentaria, portanto, não a partir de condições materiais, objetivas, do mercado e das necessidades da exploração, mas de atitudes individuais, oriundas de pessoas descontroladas e despreparadas que deixaram de acreditar em si mesmas e em seu potencial para poder recomeçar.
A passagem das motivações sociais e econômicas para os problemas da personalidade, como explicação que tende a se generalizar, tranquiliza a elite, permite-lhe continuar sua obra de embrutecimento das maiorias em função das metas que se propõe e lhe possibilita matar dois coelhos com um único golpe: de um lado, o substrato econômico, político, social e cultural acaba escondido pelo biombo de uma vontade do sujeito que tudo explica, tudo pode, tudo tem condições de realizar; de outro, a luta política, que apontava para a necessidade de superar a desigualdade econômica, a discriminação, a marginalização através de uma nova ordem social, é substituída pela decisão do indivíduo de dar a volta por cima. Vítima de uma situação pela qual se supõe que ninguém pode ser culpado (pois, como se diz, “as coisas são assim mesmo”, “é o mercado”, etc.), o “EU” só não conseguiria se reerguer e optaria por comportamentos/atitudes aberrantes apenas por um desvio de conduta alicerçado na incapacidade de administrar as emoções negativas oriundas da situação em que se encontra. Graças à mágica da presença/ausência de autoestima, a elite, que fez, e continua produzindo, os estragos com sua exploração da classe trabalhadora, deixa o banco dos réus para assumir o papel de benfeitora daqueles que, através de suas ações de “responsabilidade social” buscam um lugar onde se refugiar, ao passo que a vítima é relegada ao banco dos réus, pois, nesta lógica perversa, a ordem social não pode ser condenada por ser “natural” e comum a todos ao passo que só não sai do buraco quem não quer.
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Para o novo conformismo, querer não é apenas poder, mas sim a atitude imprescindível para levantar, recomeçar, acreditar no sucesso, se afirmar e subir novos degraus da pirâmide social. Quando isso não ocorre, então, é porque o núcleo de onde o sujeito saiu está doente, desenvolve atitudes, relações, ideias, valores e formas de comportamento consideradas “tóxicas” para o futuro e o bem-estar individual e coletivo. Por outro lado, esta percepção da realidade faz com que o indivíduo alheio a este núcleo não se sinta responsável pelo que ocorre na sociedade. De fato, eu, que nasci numa “boa” família, como posso ter algo a ver com a família da favela da qual saiu “esse fulaninho aí”? Enquanto sujeito, o que posso fazer é agir para me resguardar de uma eventual ameaça, buscar me proteger e, obviamente, pedir que alguém faça valer meus direitos caso venha a ser atingido por uma situação desagradável. Se, como indivíduo, não tenho a menor responsabilidade na produção/reprodução das relações sociais do ambiente em que vivo, então o meu papel deve se limitar à cobrança dos meus direitos, de preferência através de um profissional competente, capaz ao menos de obter monetariamente a compensação pelos estragos produzidos na minha autoestima e no estado de espírito forçado a passar por certo período de sofrimento.
Analisando agora o âmbito das relações de trabalho à luz desta perspectiva, é curioso perceber que as vítimas de assédio moral, por exemplo, não percebem que o próprio assédio só é possível na exata medida de sua submissão. Ou seja, além do inegável papel do assediador, encontramos a ausência de ação de um indivíduo ou grupo que deixou de ser AUTOR, de escrever seu roteiro de relações e de batalhar por ele e que, diante do aparecimento de distúrbios psíquicos, limita-se, no máximo, a cobrar na justiça a reparação dos danos morais sofridos. Longe de perceber que sua omissão é um dos elementos fundamentais para o assédio ganhar asas, sua postura continua se recusando a agir diretamente no âmbito do trabalho. O mais comum é que culpe o chefe/supervisor mau caráter e transfira para o advogado a cobrança de uma compensação monetária. Esta opção não só confirma aos patrões que o crime compensa (na medida em que, no Brasil, não mais de 10% dos injustiçados buscam recuperar seus direitos na justiça, sendo que 6% deles farão acordo antes do encerramento do processo), mas, sobretudo reafirma na prática que a realidade da qual é vítima é o resultado de forças externas poderosas e incontroláveis, nunca de sua omissão.
Neste processo, o fato de as desgraças poderem ser sempre atribuídas aos OUTROS, e nunca à falta de ação pessoal, permite aos patrões encolher cada vez mais o campo de autonomia do sujeito e dificultar sobremaneira a preparação de uma resposta coletiva na medida em que nem o indivíduo nem o grupo percebem que as coisas só estão assim porque eles deixam de agir ou atuam somente numa determinada direção. Como funcionário, preciso sempre de alguém para atribuir a culpa da minha condição, pois encontrar um culpado me exime de assumir as responsabilidades que tenho nos acontecimentos e permite atribuir os meus problemas a uma causa externa, sobre a qual, aparentemente, não há o que possa fazer. O que, por sua vez, só reafirma que posso apenas cuidar de mim e nada mais.
Vale ressaltar que as queixas e a busca de um culpado não são criticáveis enquanto tais. Na nossa sociedade são muitíssimos os problemas dos quais se queixar e maior ainda é o número de entidades/pessoas contras as quais apontar o dedo ao formular acusações. A busca de um culpado, porém, torna-se um problema quando o indivíduo se livra de todo senso de responsabilidade pela própria condição e pela degradação das relações sociais ao seu redor. Todos vivemos em circunstâncias sobre as quais temos pouco controle, mas se renunciamos à possibilidade de exercer este mínimo de influência sobre a orientação da vida coletiva corremos o risco de depreciar o sentido da nossa humanidade e tornarmo-nos cada vez mais vítimas de nossa própria omissão.
Isso explica porque, como indivíduo, detesto um sindicato que aponte minhas responsabilidades e aumente minha insegurança ao me colocar frente a frente com a realidade dos fatos. Tudo o que preciso é que forneça um bom advogado, lute por uma justiça ágil, coloque processos de cobrança alheios a qualquer risco para que, reparado o dano sofrido, “EU” possa recuperar minha auto-estima, ser reconhecido e retomar o meu caminho. Como qualquer ser humano, eu, trabalhador da categoria, gosto de acreditar em algo ou alguém porque isso me faz sentir confortável e amparado, e não de me ver como soldado na linha de frente, diante de um inimigo poderoso e com a estranha sensação de virar alvo ao menor deslize que venha cometer. O que quero mesmo é que seja possível ter tudo, ao mesmo tempo, agora e, obviamente, sem riscos! É como se, ao desejar um filho, a condição para iniciar a gravidez fosse a de não lidar com enjoos, não ficar com dores nas costas, não ganhar peso, nem ter aqueles efeitos desagradáveis que costumam aparecer neste período e, obviamente, dar a luz a uma criança saudável que não dê trabalho e nem faça perder uma única noite de sono. A esta altura, o bom senso aconselharia comprar um boneco, mas, para não desagradar, não são poucas as vezes em que se opta por passar a mão na cabeça, por entender e por deixar de colocar as pessoas frente a frente com suas responsabilidades históricas.
isomaa6Para agradar, para ser vistas como representativas e combativas ou simplesmente para não correr riscos de perder associados, as direções sindicais deixam frequentemente de tratar os trabalhadores como adultos e enveredam por formas de paternalismo tão nefastas quanto às que eram marcada pelo assistencialismo dos velhos pelegos. Por isso, até que ponto a ação sindical consegue construir a dúvida na cabeça de seus representados ao explorar a via do sentimento para recolocar a razão diante da realidade das relações sociais que escapa da percepção do senso comum? Afinal, sabemos “incomodar” o trabalhador ao colocá-lo diante de suas responsabilidades históricas para consigo mesmo e os demais ou a postura do sindicato acaba favorecendo o processo que descrevemos com atitudes e serviços que compensam parcialmente a falta de atuação coletiva, reafirmando as justificativas individuais para a omissão e ocultando o desenvolvimento dos mecanismos de exploração? E, neste processo, estamos conseguindo nos fazer entender ou nossos interlocutores apenas balançam a cabeça à espera de que, terminado nosso discurso, possam voltar a seus afazeres com a sensação de ter perdido o próprio tempo?

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