domingo, 10 de outubro de 2010

A moradia do pobre ameaçada pela Copa e pelas Olimpíadas

Relatora da ONU para o direito à moradia adequada afirma que somente com mobilização é possível frear despejos

06/10/2010



Eduardo Sales de Lima
da Redação



A realização de grandes eventos esportivos vem sempre acompanhada por violações aos direitos humanos. Especificamente no setor de moradia, os problemas sobressaltam-se ainda mais. Isso é o que conclui a relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para o direito à moradia adequada, Raquel Rolnik.
Para ela, as comunidades mais atingidas e desrespeitadas por grandes eventos esportivos são justamente as de menor renda. A relatora da ONU cita exemplos de remoção em massa no Cazaquistão, na Índia e na China, por conta de eventos desse tipo.

Rolnik destaca que, por meio de mobilização popular, ainda é possível evitar os despejos autoritários tão comuns no Brasil. E isso já está ocorrendo. Organizações sociais urbanas de todo o país realizaram, entre os dias 20 e 24 de setembro, a Jornada de Lutas Nacional contra Despejos.

Potencializadas, agora, pela realização da Copa do Mundo e das Olimpíadas, em 2014 e 2016, respectivamente, as remoções massivas de comunidades pobres, em decorrência de obras de infraestrutura, tendem a se intensificar. Em entrevista, Rolnik elucida essa e outras questões.


Brasil de Fato – Trata-se de um mito o fato de que a realização de grandes eventos valorizam as cidades-sede e melhoram os indicadores socioeconômicos?
Raquel Rolnik –
A pergunta central que deve ser feita é “benefício para quem?”. Esses grandes eventos esportivos geram oportunidades de negócios. Isso implica uma movimentação do ponto de vista dos negócios, da dinamização econômica dessas cidades. Agora, toda a discussão é quem será beneficiado por isso. E a resposta vai depender fundamentalmente do conjunto de políticas que serão implementadas por essas cidades e, nos eventos de jogos olímpicos, no Rio de Janeiro. Vamos depender muito da capacidade de organização da sociedade civil. Um exemplo é o caso da cidade de Vancouver, no Canadá, sede dos Jogos Olímpicos de Inverno, ocorridos em fevereiro de 2010, que tinha uma proposta inicial e que teve toda uma mobilização social que obrigou os promotores do evento a reverem seus planos e suas posições e incorporarem uma agenda muito mais social a partir dessas intervenções.


Você destaca em sua relatoria da Organização das Nações Unidas (ONU) que um dos setores que serão mais atingidos será o da moradia. Mas os projetos urbanísticos relacionados às cidades-sede da Copa do Mundo no Brasil poderão sofrer mudanças com mobilização social, sobretudo os relacionados à moradia?

Isso é uma questão constante nas cidades que sediaram eventos desse tipo. A remoção em massa, decorrente das grandes obras, não somente da construção ou reforma de estádios, mas também das obras de infra-estrutura em conjunto, promovendo reurbanização e melhorias na mobilização das cidades, atinge especialmente as comunidades de mais baixa renda e os assentamentos informais. Eles são muito vulneráveis às situações de remoção na medida em que a situação da propriedade é muito menos reconhecida no âmbito jurídico do que a propriedade privada registrada no cartório.

Ou seja, quando as obras de infraestrutura ligadas aos estádios envolvem propriedades privadas, vão envolver compensação, vão envolver um pagamento em relação àquela casa e muitas vezes o pagamento é razoável. O que acontece é que quando se trata de comunidade de baixa renda, normalmente, os direitos são muito pouco reconhecidos, mesmo o direito à moradia estando escrito na Constituição, como no caso brasileiro.

Nós já estamos assistindo às propostas de remoção em Belo Horizonte (MG), em Fortaleza (CE), no Rio de Janeiro (RJ), em São Paulo (SP). Em várias cidades do Brasil isso já está acontecendo sem a adequada compensação com propostas de assentamento. Até o momento isso é um dos grandes problemas, dos grandes perigos na realização desses eventos aqui no Brasil, violações no campo do direito à moradia.


Você sabe quantidade de famílias que já foram ou serão atingidas?

Eu estou tentando montar uma base de dados. Mas não há informação, é uma caixa preta. Como é possível que projetos que estão sendo apresentados para acontecerem por cima de comunidades sequer disponibilizam a informação de quantas famílias vão ser afetadas, e qual será o destino dessas famílias. Essa informação não existe, ela não está disponível.

O que eu sei, inicialmente, é que, no Rio de Janeiro, sessenta comunidades seriam de alguma forma atingidas por obras ligadas à Copa do Mundo a às Olimpíadas. Isso pode ser parcialmente, pode ser totalmente. Mas quantas pessoas estão nessas comunidades, qual o tamanho delas, o que irá acontecer, nada disso se sabe, não se tem dados. E isso é o elemento básico na questão do direito à moradia, que é o direito de todos os atingidos de saber quando tal projeto fica pronto, qual a proposta, e o direito, inclusive, de participar da discussão de alternativas dessas propostas. Sempre têm alternativas que vão remover menos, o contrário do que está acontecendo no Brasil hoje.

Se há essa caixa preta sobre os impactos sobre a população, então há muito menos informações sobre os recursos que seriam destinados a essas comunidades, e a melhoria e ampliação dos equipamentos públicos que serão utilizados no local onde essas pessoas serão alocadas.
Tenho acompanhado todos esses projetos para a Copa e isso posso te dizer com muita segurança. Acompanho os protocolos que têm sido assinados entre o governo federal, os governos estaduais e prefeituras que envolvem a Copa do Mundo. Nenhum deixava claro qual será o destino da família. O meu grande temor é que a maior parte das famílias receba simplesmente o “cheque-despejo”. Joga na mão delas um cheque, às vezes, de R$ 5 mil, de R$ 3 mil, de R$ 8 mil, que todos nós sabemos que é absolutamente insuficiente para sequer comprar um barraco de favela.


Num processo sem discussão, essas famílias ficam sem escolha. É o que aconteceu na Copa da África do Sul, não?

É inadmissível que no Brasil, considerando a importância dos movimentos sociais por moradia, da luta pela terra, mesmo assim, nós vamos repetir aqui o que, por exemplo, acabamos de testemunhar na Índia, em Nova Deli, as consequências das reformas urbanas causadas pelo Commonwealth Games [que ocorrerão entre os dias 3 e 14 de outubro]. No Cazaquistão, em decorrência dos Jogos Asiáticos de Inverno (2011), na África do Sul, por causa da Copa do Mundo, especialmente na Cidade do Cabo, e na China, devido aos Jogos Olímpicos de Pequim, de 2008, ocorreram desrespeitos semelhantes em relação à moradia.


O que aconteceu?

É muito difícil ter os números exatos para dizer exatamente quantos foram os atingidos. Se fala num número de um milhão de pessoas removidas em função, não apenas das estruturas dos Jogos Olímpicos de 2008, mas também por causa de toda a transformação urbanística da cidade. Normalmente, na política chinesa, as famílias são removidas para conjuntos habitacionais na extrema periferia da cidade.

Mas a situação chinesa é melhor do que essa que testemunhamos em Nova Deli, por causa do Commonwealth Games, onde favelas foram inteiramente removidas e simplesmente não houve nenhuma alternativa de reassentamento para milhares de famílias.

No Cazaquistão, onde eu acabei de estar agora, para construir os estádios que serão utilizados pelo Jogos Asiáticos de Inverno, muitas famílias que viviam em assentamentos informais e que foram removidas receberam uma compensação financeira, mas essa compensação foi completamente insuficiente para elas poderem adquirir uma moradia digna com esses recursos. Estou falando de duzentas, trezentas famílias.

No caso da África do Sul, a localidade que eu acompanhei mais foi a Cidade do Cabo, onde existia uma favela enorme, com 20 mil moradores. O governo já havia, há muitos anos, anunciado a intenção de urbanizar essa favela. E o que acabou acontecendo é que pessoas que foram removidas para habitações temporárias – para que ficassem nessa condição provisória até a reurbanização e redesenho do assentamento – até hoje permanecem nessa condição provisória. Muitos residem em “casas” que apelidadas “microondas”, porque são contêineres feitos de metal. Os prédios novos nesse assentamento acabaram não indo para a população que morava lá antes, mas sim para uma população de maior renda.

Tudo isso são exemplos de como a questão da moradia tem sido tratada em decorrência de grandes eventos. E é tudo o que se prenuncia no Brasil se rapidamente não houver uma mobilização dos próprios assentados e de todas as redes de movimentos sociais para induzir a realização de uma política de direito à moradia.


O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) é a instituição que, em teoria, deveria fomentar o desenvolvimento social do país. Afinal de contas, não seria a grande oportunidade dele exercer sua função social em relação a essa questão da moradia?

Essa questão do BNDES é ainda mais grave do que o modo como você está colocando. O governo brasileiro assumiu a posição de que o dinheiro público seria utilizado para obras de infraestrutura e mobilidade. Em relação aos estádios, seria pegar empréstimos de um banco público para investir nos estádios e, ao investir nos estádios, depois pagar de volta ao banco. Ele estaria atuando exatamente como ele atua hoje em vários ramos empresariais. Isso já acontece. Entretanto, está entrando dinheiro público sim, de uma maneira completamente indireta, mas eu vou citar alguns exemplos.

É o caso do estádio do Atlético Paranaense, em Curitiba. O Atlético, um clube privado, que teoricamente iria fazer a reforma de seu estádio, falando que iria se endividar, não iria pegar dinheiro do BNDES de acordo com que a FIFA pedia. Tem esse detalhe. A Fifa é a entidade mais corrupta de que se tem notícia. Ela consegue ser mais corrupta do que os governos. A Fifa exige reformas muito além do necessário, porque isso gera caixinha para seus dirigentes.
Tantos os projetos de reforma da Arena da Baixada, do Atlético Paranaense, e do estádio do Morumbi, do São Paulo, são semelhantes. Os dois clubes fizeram a proposta de reforma, que ia custar menos do que a Fifa queria, entre R$ 200 e R$ 300 milhões. A Fifa virou e falou que não, que não podia ser essa reforminha, teria que ser uma reforma maior, que gastasse algo em torno de R$ 500 milhões. No caso da Arena da Baixada, eles trabalham com o potencial construtivo do terreno [títulos imobiliários disponibilizados pela prefeitura de Curitiba e pelo estado do Paraná para promover a participação de investidores privados. A construtora que será contratada pelo Atlético Paranaense terá esses títulos como fiança. O valor máximo do potencial a ser cedido ao clube é R$ 90 milhões] onde está a arena, de modo que o investidor que está ali possa vender esse potencial construtivo, algo completamente delirante do ponto de vista jurídico.


Raquel Rolnik é urbanista, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) e relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para o direito à moradia adequada

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Saiba o que é o capitalismo

Saiba o que é o capitalismo

Atilio A. Boron [*]

O capitalismo tem legiões de apologistas. Muitos o são de boa fé, produto de sua ignorância e pelo fato de que, como dizia Marx, o sistema é opaco e sua natureza exploradora e predatória não é evidente aos olhos de mulheres e homens. Outros o defendem porque são seus grandes beneficiários e amealham enormes fortunas graças às suas injustiças e iniquidades. Há ainda outros (‘gurus’ financeiros, ‘opinólogos’ e ‘jornalistas especializados’, acadêmicos ‘pensantes’ e os diversos expoentes desse "pensamento único") que conhecem perfeitamente bem os custos sociais que o sistema impõe em termos de degradação humana e ambiental. Mas esses são muito bem pagos para enganar as pessoas e prosseguem incansavelmente com seu trabalho. Eles sabem muito bem, aprenderam muito bem, que a "batalha de ideias" para a qual nos convocou Fidel é absolutamente estratégica para a preservação do sistema, e não aplacam seus esforços.

Para contra-atacar a proliferação de versões idílicas acerca do capitalismo e sua capacidade de promover o bem-estar geral, examinemos alguns dados obtidos de documentos oficiais do sistema das Nações Unidas. Isso é extremamente didático quando se escuta, ainda mais no contexto da crise atual, que a solução dos problemas do capitalismo se consegue com mais capitalismo; ou que o G-20, o FMI, a Organização Mundial do Comércio e o Banco Mundial, arrependidos de seus erros passados, poderão resolver os problemas que asfixiam a humanidade. Todas essas instituições são incorrigíveis e irreformáveis, e qualquer esperança de mudança não é nada mais que ilusão. Seguem propondo o mesmo, mas com um discurso diferente e uma estratégia de "relações públicas" desenhada para ocultar suas verdadeiras intenções. Quem tiver duvidas, olhe o que estão propondo para "solucionar" a crise na Grécia: as mesmas receitas que aplicaram e continuam aplicando na América Latina e na África desde os anos 80!

A seguir, alguns dados (com suas respectivas fontes) recentemente sistematizados pelo CROP, o Programa Internacional de Estudos Comparativos sobre a Pobreza, radicado na Universidade de Bergen, Noruega. O CROP está fazendo um grande esforço para, desde uma perspectiva crítica, combater o discurso oficial sobre a pobreza, elaborado há mais de 30 anos pelo Banco Mundial e reproduzido incansavelmente pelos grandes meios de comunicação, autoridades governamentais, acadêmicos e "especialistas" vários.

População mundial: 6.800 bilhões, dos quais...

• 1,020 bilhão são desnutridos crônicos (FAO, 2009)

• 2 bilhões não possuem acesso a medicamentos (www.fic.nih.gov)

• 884 milhões não têm acesso à água potável (OMS/UNICEF, 2008)

• 924 milhões estão "sem teto" ou em moradias precárias (UN Habitat, 2003)

• 1,6 bilhão não têm eletricidade (UN HABITAT, "Urban Energy")

• 2,5 bilhões não têm sistemas de drenagens ou saneamento (OMS/UNICEF, 2008)

• 774 milhões de adultos são analfabetos (www.uis.unesco.org)

• 18 milhões de mortes por ano devido à pobreza, a maioria de crianças menores de 5 anos (OMS).

• 218 milhões de crianças, entre 5 e 17 anos, trabalham precariamente em condições de escravidão e em tarefas perigosas ou humilhantes, como soldados, prostitutas, serventes, na agricultura, na construção ou indústria têxtil (OIT: A eliminação do trabalho infantil: um objetivo ao nosso alcance, 2006).

Entre 1988 e 2002, os 25% mais pobres da população mundial reduziram sua participação na renda global de 1,16% para 0,92%, enquanto os opulentos 10% mais ricos acrescentaram mais às suas fortunas, passando de dispor de 64,7% para 71,1% da riqueza mundial. O enriquecimento de uns poucos tem como seu reverso o empobrecimento de muitos.

Somente esse 6,4% de aumento da riqueza dos mais ricos seria suficiente para duplicar a renda de 70% da população mundial, salvando inumeráveis vidas e reduzindo as penúrias e sofrimentos dos mais pobres. Entenda-se bem: tal coisa se conseguiria se simplesmente fosse possível redistribuir o enriquecimento adicional produzido entre 1988 e 2002 dos 10% mais ricos. Mas nem sequer algo tão elementar como isso é aceitável para as classes dominantes do capitalismo mundial.

Conclusão: se não se combate a pobreza (que nem se fale de erradicá-la sob o capitalismo) é porque o sistema obedece a uma lógica implacável centrada na obtenção do lucro, o que concentra riqueza e aumenta incessantemente a pobreza e a desigualdade socioeconômica.

Depois de cinco séculos de existência eis o que o capitalismo tem a oferecer. O que estamos esperando para mudar o sistema? Se a humanidade tem futuro, será claramente socialista. Com o capitalismo, em compensação, não haverá futuro para ninguém. Nem para os ricos e nem para os pobres. A frase de Friedrich Engels e também de Rosa Luxemburgo, "socialismo ou barbárie", é hoje mais atual e vigente do que nunca. Nenhuma sociedade sobrevive quando seu impulso vital reside na busca incessante do lucro e seu motor é a ganância. Mas cedo que tarde provoca a desintegração da vida social, a destruição do meio ambiente, a decadência política e uma crise moral. Ainda temos tempo, mas já não tanto.

12 de Maio de 2010

[*] Atilio A. Boron é diretor do PLED, Programa Latinoamericano de Educación a Distancia em Ciências Sociais, Buenos Aires, Argentina

Sítio: www.atilioboron.com/

Traduzido por Gabriel Brito, jornalista

Reproduzido de Correio da Cidadania

Esta página encontra-se em www.cecac.org.br

18/maio/2010